O enfrentamento das incertezas da vida é uma questão comum a todos nós e, num contexto de crise sem precedentes como o da atual pandemia de COVID-19, também compartilhamos a dificuldade de lidar com o acúmulo delas.
No mundo do trabalho, não raro, espera-se das figuras de liderança a proposição de respostas assertivas e claras, que orientem a equipe frente a tantas incertezas.
No entanto, em um cenário de tanta instabilidade e imprevisibilidade, seria possível e até mesmo justo exigir que essa assertividade e clareza provenham de uma pessoa apenas? Como o líder poderia, então, ajudar a sua equipe num mundo invariavelmente incerto, em que vida pessoal e profissional se misturam cada vez mais?
“Em contextos complexos, com alto grau de incerteza, o papel do líder é ajudar a equipe a construir um novo sentido sobre o que está acontecendo”, afirma Beatriz Garcia.
Graduada em Administração de Empresas pela Universidad Comercial de Deusto, na Espanha, 1992) e mestre pela Manchester Business School (Reino Unido), Beatriz tem mais de 26 anos de experiência em consultoria de empresas em diversos países. No próximo dia 12 de maio ela participa do webinar O papel da liderança em tempos de crise, do LABFIN.PROVAR, ao lado de Fátima Jinnyat (clique aqui para conferir a entrevista com Fátima).
Conversamos com Beatriz, entre outros tópicos, a respeito do papel do líder enquanto facilitador e do impacto positivo que ele ou ela pode gerar na equipe ao abraçar a incerteza, sabendo, no entanto, que “nem sempre haverá respostas claras e assertivas”.
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Administrar as instabilidades da vida é uma tarefa comum a todos nós, tanto num contexto profissional quanto na esfera pessoal. Porém, no mundo do trabalho, é comum se esperar de um líder a capacidade de apontar caminhos claros e assertivos. Num cenário tão imprevisível como o de agora, de que maneira os líderes podem se reinventar para que não percam a si mesmos?
Em um mundo instável, a primeira coisa que temos que questionar é a expectativa de que o líder aponte caminhos claros e assertivos. É impossível e até errado tentar dar respostas neste momento. O papel do líder (e o papel da equipe) tem que ser redefinido. Em contextos complexos, com alto grau de incerteza, o papel do líder é ajudar a equipe a construir um novo sentido sobre o que está acontecendo; facilitar o processo de emergência de novas ideias e novas atividades; criar um certo senso de união, deixando clara a expectativa de que para avançar todos têm que se mobilizar e experimentar coisas novas sem esperar uma diretriz clara. A resposta não necessariamente virá do líder. O líder passa a ser um facilitador. E para fazer essa transformação talvez o líder precise se permitir perder-se um pouco.
Muitos de nós estamos trabalhando de casa nestes tempos de pandemia. O papel da liderança, assim, ganha ainda mais esse componente desafiador, uma vez que o home office é uma novidade para muitas empresas e profissionais e a adaptação a esse formato teve que se dar de modo muito brusco. Como você avalia que a liderança pode colaborar, mesmo a distância, para que sua equipe se mantenha produtiva, engajada e, ao mesmo tempo, saudável física e emocionalmente em tempos tão incertos?
Muitos líderes estão reportando certa surpresa com os níveis de engajamento das equipes. E não é de estranhar. Em contextos de tanta incerteza, o movimento natural do ser humano é se refugiar no grupo. Só que o distanciamento social previne essa reação instintiva. Por isso, participar ativamente em vídeo chamadas e manter o trabalho funcionando ajuda a criar um certo senso de grupo. Sem mencionar que em muitos casos existe também o medo de perder o emprego. Não é o momento para ninguém parar de trabalhar ou demonstrar falta de engajamento.
Portanto, a questão é o que significa ser produtivo e engajado e como manter a saúde física e emocional. O líder deveria reflexionar sobre o quanto ele ou ela é parte do problema ou parte da solução. Alguns pontos que considero válidos para reflexão neste momento são:
a) Será que caí na armadilha do excesso de controle do que a minha equipe faz por receio de que eles parem de trabalhar ou não façam as coisas certas?
b) Será que fico esperando que o trabalho seja o mesmo de antes da crise? Há duas semanas uma pessoa comentou comigo: “tenho de trabalhar 10 horas para fazer o que antes fazia em 8”. Não sei até que ponto fica claro o problema contido nessa frase, mas o ponto é: estamos no meio de uma crise, o contexto mudou de modo radical, tanto agora como no futuro. A quarentena é só a primeira fase da crise. E o trabalho a fazer é o mesmo? Será que deveria ser o mesmo? Tudo tem que ser repensado: o trabalho, os objetivos, as prioridades. Elas deveriam ser analisadas sob a lente do novo contexto, sem medo de mudar planejamentos e objetivos.
c) Se há pessoas tentando fazer o mesmo que faziam antes, além de provavelmente não ser o mais produtivo, só levará ao esgotamento físico e mental. As pessoas estão em casa com famílias, crianças, escola online, tarefas domésticas, cuidando de idosos. A quantidade de trabalho só aumentou. O papel do líder deveria ser ajudar as pessoas a conciliar as diferentes demandas ou criar um espaço para que elas possam escolher como atender essas diferentes demandas. A vida pessoal e profissional nunca estiveram tão misturadas.
Em um momento de crise tão sem precedentes em nossa história recente, as incertezas do presente e do futuro assustam a todos, mas também podem abrir possibilidades de atuação que até então não conseguíamos vislumbrar. De que modo a liderança pode ajudar seus colaboradores a desenvolverem resiliência diante das incertezas e seus dilemas?
As crises são necessárias e inevitáveis. É uma ilusão achar que as crises são ruins. Elas fazem parte da vida. E uma crise é um sinal de que algo está mudando e não estávamos prestando atenção. O medo das crises nos faz ignorar os sinais, e quando elas chegam o resultado é muito mais devastador. Todos deveriam pensar: o que esta crise significa? No que eu não estava prestando atenção? O que posso aprender com ela? E como podemos usar esse aprendizado não necessariamente para evitar a próxima crise, mas sim para contribuir para melhorar o mundo. Não controlamos a crise, mas podemos descobrir modos de sair dela melhorados.
De que forma você acredita que podemos exercitar um convívio mais harmonioso com aquilo que é incerto? Seria essa habilidade o diferencial de um bom líder?
Creio que se trata de uma habilidade diferencial para qualquer ser humano. E um líder que abraça a incerteza e sabe como lidar com ela é um enorme diferencial neste momento. Por estar nessa posição de liderança, ele pode impactar positivamente mais pessoas. Mas, na minha opinião, a humanidade precisa compensar valores e crenças provenientes de um mundo mais estável, com valores e crenças mais adaptados à nossa realidade. E uma delas é admitir que nem sempre haverá respostas claras e assertivas.