Joe Biden é o novo presidente eleito dos Estados Unidos. Sabemos. Mas que tal refletirmos um pouco sobre o significado dos resultados eleitorais de novembro naquele país? Como fica a economia mundial com o novo governo? E a nossa economia, aqui no Brasil? Afinal, o que podemos esperar do governo Biden? Para começarmos a especular sobre o futuro, precisamos entender o atual contexto em suas várias dimensões.
O contexto atual
Entre as economias mais desenvolvidas, os Estados Unidos são o país que apresenta o maior grau de desigualdade. Dez porcento das famílias mais ricas detêm 85% das riquezas e da renda. Se observarmos apenas as famílias que representam um porcento dos mais ricos, veremos que a concentração de renda é ainda maior: essas famílias detêm mais de 50% das riquezas da nação. Do ponto de vista político-institucional, veremos um congresso dividido, com ligeira vantagem para o novo presidente. A Câmara dos Representantes, equivalente à nossa Câmara dos Deputados, terá maioria Democrata. Assim como o Senado, por margem extremamente estreita, que passará a ser comandada pelos Democratas.
Ideologicamente, a corrente de apoiadores do presidente Donald Trump é bastante relevante (praticamente a metade do país) e fiel a uma pauta conservadora e pouco conectada ao multilateralismo nas relações entre os países. Por fim, parte dos apoiadores de Trump ainda acredita que houve fraude no processo eleitoral, apesar de não existir qualquer evidência, sendo esse mais um fator a amplificar as tensões e produzir ainda mais divisão no país. A inacreditável invasão do Capitólio por apoiadores de Trump é apenas um primeiro ato de irracionalidade nesse novo ciclo que se inicia no dia 20 de janeiro (posse de Joe Biden como presidente).
Outro fator conjuntural que afetou os resultados das eleições e fragilizou a economia norte-americana foi a eclosão da pandemia do novo coronavírus. A má gestão de Trump na área da saúde para enfrentar a pandemia produziu, até a data em que escrevo este artigo, mais de 388 mil mortes (equivalente a baixas de quase seis guerras do Vietnã), sobrecarregando hospitais, que são eminentemente privados naquele país. A economia, como consequência, sofreu um duro impacto, com queda do PIB real, no 2º trimestre, da ordem de 9% e nova redução de 2,9% no PIB real, no 3º trimestre, na comparação aos mesmos períodos do ano anterior.
Em paralelo, a taxa de desemprego saltou de 3,5%, em fevereiro deste ano, para 6,9%, em outubro, passando pelo pico de 14,7%, em abril, com impacto persistente sobre a vida de milhões de pessoas que vivem nos Estados Unidos. Infelizmente, no quarto trimestre e início de 2021, observamos um novo repique no número de casos e mortes por COVID-19, cujos efeitos econômicos foram atenuados pela expectativa de melhora no cenário econômico em função do início do processo vacinação.
No campo geopolítico, observamos uma verdadeira disputa pela hegemonia global entre duas grandes potências. O impacto da pandemia sobre o PIB chinês foi severo no 1º trimestre deste ano, com queda de 6,8% no PIB real, e seguidos crescimentos nos trimestres subsequentes, de 3,2% e 4,9%, respectivamente. Nos últimos anos, a China avançou no comércio internacional, aumentando a sua relevância na relação de troca com países da Europa, África e América Latina, regiões sob maior influência norte-americana nas últimas décadas.
Apenas para ficarmos em um exemplo dessa nova disputa entre gigantes, nas telecomunicações, observamos uma dura batalha diplomática ligada à infraestrutura de 5G que será (e está sendo) adotada por vários países. Lembremos apenas que o mundo da internet das coisas (IOT) e das cidades inteligentes é suportado pela tecnologia 5G. Trata-se de uma plataforma sobre a qual se conectam vários negócios e serviços, estando ligada, é claro, aos direcionadores de produtividade (e, portanto, competitividade) de várias economias ao redor do mundo.
Para não nos perdermos, fiquemos, então, com um resumo do contexto que envolve o início do governo Biden:
- Estados Unidos, uma nação dividida;
- Estados Unidos, uma economia fragilizada pela pandemia;
- E Estados Unidos, um país envolvido em uma acirrada disputa pela hegemonia geopolítica – e que perdeu influência diplomática durante o governo de Donald Trump.
O que esperar do governo Biden
Entendido o contexto, agora vamos a um exercício de futurologia. A seguir, as minhas apostas para o governo Biden.
No campo interno, de imediato, o foco de Biden deverá ser na busca por uma solução para a pandemia (ou seja, acelerar o processo de vacinação e organizar o sistema de saúde, minimamente). Quanto mais rápida for a sinalização de que o governo tem um plano consistente, mais rápida será a recuperação econômica. Penso que seu governo será bem-sucedido nesse quesito. Profissionais da política institucional, mesmo que tenhamos uma visão crítica sobre eles, sabem mobilizar estruturas para a execução de suas políticas públicas.
Ainda no campo interno, no médio e no longo prazos, o governo Biden sabe que os EUA precisam liderar um novo ciclo econômico, buscando:
- Diminuir as desigualdades econômicas;
- Desenvolver um plano de modernização da infraestrutura para gerar empregos e aumentar a produtividade econômica;
- Estimular o crescimento de negócios sustentáveis ligados a um baixo consumo de carbono, por exemplo.
Nessas três estratégias, por contar com maioria apertada no congresso e por encontrar um país dividido, como já exposto, penso (e torço para estar errado) que o governo Biden terá dificuldades para executar plenamente as suas políticas. Esse é um fator que pode gerar certa instabilidade e que deve obrigá-lo a ser menos ambicioso na direção do seu programa de governo, o que pode gerar frustrações. No entanto, penso que o saldo ainda será positivo para a sociedade norte-americana.
No campo internacional, deveremos ver um rápido retorno dos EUA aos acordos multilaterais, em especial os ligados ao comércio e ao meio ambiente, com os EUA assumindo novamente o seu protagonismo. O país deverá seguir usando sua força diplomática para se opor à adoção de tecnologia chinesa no 5G e pressionar a China para adote padrões ocidentais tanto no âmbito político (defesa das liberdades individuais) como no campo econômico (defesa de maior abertura econômica da China e que essa se enquadre às políticas ocidentais de livre comércio).
Minha opinião é que a execução dessas estratégias será prejudicada pela perda de influência diplomática ocorrida durante os anos de governo Trump. No entanto, exceto pelas dificuldades internas já apontadas e pela pressão de grandes corporações, penso que as duas potências devem, de forma pragmática, construir acordos de cooperação que sejam benéficos aos dois países. EUA e China têm economias extremamente conectadas, o que significa que o fracasso de um é o fracasso do outro, ao menos no curto e médio prazos.
Por fim, chegamos aos reflexos disso tudo sobre o nosso país, sobre a nossa economia e sobre a vida de nós brasileiros. Se seguirmos nos afastando do tradicional pragmatismo diplomático que sempre buscou defender os nossos interesses concretos, evitando dar peso a questões ideológicas conjunturais, podemos sofrer muitas consequências negativas. Por exemplo, no campo interno, a demora no equacionamento do problema da pandemia pode nos gerar sérias consequências econômicas, inclusive com restrição sobre o fluxo de cidadãos e produtos brasileiros pelo mundo. Precisamos ter um cuidado extra quanto à imagem do país em relação às medidas que adotamos para proteger o meio ambiente.
Um provável acordo entre EUA e China deverá restringir, potencialmente, o acesso do Brasil a mercados globais ligados ao agronegócio e outras commodities (mineração e petróleo, por exemplo). Também temos de ser muito pragmáticos quanto à adoção da infraestrutura do 5G. Atrasos nessa área afetam a atração de investimentos e a produtividade futura de nossa economia. Mais ainda, precisamos seguir aprimorando nossas instituições, combatendo as desigualdades e realizando reformas que modernizem o nosso ambiente de negócios para atrair investimentos, de forma sustentada.
Portanto, precisaremos, mais do que nunca, nos esforçar para que criemos um ambiente de respeito às diferenças e de estímulo ao diálogo, buscando concentrar esforços em aspectos que serão relevantes para o nosso futuro: obsessão pela construção de uma educação pública de qualidade que emancipe o indivíduo e o conecte aos interesses das comunidades; apoio incondicional à defesa do estado democrático de direito; intenso fomento à pesquisa realizada por instituições públicas de excelência – em associação com o setor privado – (exemplos: Fiocruz, Instituto Butantan e Embrapa); além do fortalecimento do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), pois infelizmente não estaremos imunes a novas pandemias.
Não se engane – o futuro que nos espera não aceitará amadorismos e a falta de visão estratégica. O preço que nossa sociedade terá de pagar ao negligenciar esses aspectos será elevadíssimo. Lembro-me, ao escrever este artigo, de um grande amigo, que já não está entre nós, José Eduardo carneiro Queiroz. Ele sempre me dizia que precisávamos da união de boas cabeças pelo bem comum. O Zé sempre esteve certo – não podemos nos omitir e tampouco cair na armadilha da divisão por picuinhas. Por isso, bom estarmos conscientes: a História costuma ser cruel com sociedades imprevidentes.
Prof. Carlos Eduardo Furlanetti
Diretor Executivo e professor do Labfin-Provar da FIA Business School